vivencia-se muito da vida a partir da falta.

Beatriz Klein
3 min readSep 19, 2022

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02/05/22

a falta pra psicanálise é o que gera o desejo, mas quando essa falta é (defeituosa),/parte de um lugar de dor, a nossa ação e motivação se moldam conforme tentamos sanar, cuidar ou fugir dessa dor. o desejo que geramos, então, é por si só fruto dessa desordem.

escrevi, em outros tempos, sobre estar gostando de uma pessoa e de todo o processo que envolveu perceber que estava repetindo padrões sentimentais da falta. agora, me relacionando com alguém em que posso me fazer inteira e vulnerável, começo a colocar o amor como advindo duma fenda espacial de completude. a completude aqui não é vista como algo que me completa (afinal, bem sei que não se pode ser completa — apesar de nos dizerem que sim — e é necessário espaços em vazio para continuar existindo enquanto um ser desejante), mas como uma forma de propulsionar minhas ações para não mais virem de um elemento negativamente faltante.

no texto em que me vi falar sobre tantas fendas na minha forma de amar, vejo — agora mais distante, física e emocionalmente, de quem era naqueles momentos — que muitos dos porquês de estar me questionando constantemente sobre o que sentia vinha da insegurança de dar amor e carinho para alguém e não saber como eu seria recebida. de saber que ele sequer estava disponível para reconhecer pequenos afetos que, para mim, são intrínsecos de qualquer relação em que me coloco (desde amorosas até de amizades ou familiares).

todas as maneiras em que eu me questionava eram sintomas de quem estava tentando fazer caber seu afeto dentro de um lugar inacessível. e agora eu reconheço que eu me colocava muito como o centro do sentimentos, afinal, eles partiam de mim e encerravam-se em mim — eram ditos para o outro poucas vezes, e era raro que houvesse uma comunicação segura do que era sentido. a relação que eu possuía não trazia o outro como coautor do que estávamos construindo: sentia as coisas imensas sozinha. sustentei relações inteiras com pessoas indisponíveis para me amar.

então, agora, é muito bom escrever sobre meus sentimentos estando onde estou e amando quem amo, pois com ela eu tenho espaço para agir, para ser quem sou, para me colocar em lugares vulneráveis e para, acima de tudo, poder dizer o que sinto sem receio de como serei recebida. e essa falta de receio, a qual chamo de confiança e carinho, não vem somente por nosso amor que é compartilhado, mas por conta da convivência com ela, que é alguém que toma amar como algo essencial em si. (nítido o que faz amar alguém assim, pois permite que eu estenda essa concepção para fora da nossa relação e para meu círculo social).

reconheço agora que mudei coisas que eram estruturais em mim, e que ela foi a chave de mudança. é bom e necessário reconhecer isso, dar o valor que há nessa troca, pois com ela eu vejo quanto o meio e as pessoas que convivemos influenciam quem somos e nós (ou talvez eu, mas as pessoas que convivo também) não assumimos isso. há essa sensação neoliberal de que devemos saber ser bons sozinhos, que só podemos crescer e evoluir por conta própria, independente de quaisquer pessoas: o capitalismo ensina que somos sozinhos no mundo e anula a ideia central da importância da comunidade nos seres humanos.

assim, estar com essa pessoa que olha tudo o que faz a partir de uma ótica de amor — e amor aqui bem na linha da bell hooks em “tudo sobre o amor” de não ser apenas um sentimento mas uma ética de vida — é revolucionário. faz toda a compreensão que eu tinha de correlacionar a demonstração de amor com a falta, com o negativo se transformar. abriu-se um espaço dentro de mim que me faz demonstrar mais, dizer mais, passar o amor que já existia internamente para meus entornos.

não sei bem como terminar esse texto além de dizer para ler bell hooks, cuidar do porquê o amor vem dum lugar de dor, e fazer o que for possível para levar isso como prática de vida. tive a sorte de estar me relacionando com alguém que faz ser seguro demonstrar amor e que fez esse processo de cura acelerar dentro de mim. por isso, acho necessário compartilhar o quanto aprender sobre como amar, como se amar, como fazer disso uma ética de vida é crucial para pensar num mundo um pouquinho mais fácil de viver.

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